O mercado livre amadurece nos momentos de crise, e aprende lições que levam ao seu fortalecimento e à evolução nos seus procedimentos, conforme a experiencia aprendida nestes momentos pelos geradores, comercializadores e consumidores
Um dos legados que a atual pandemia vai deixar ao setor elétrico, é a convicção que o mercado livre deve ser ampliado e se tornar preponderante na participação do consumo no país.
O setor de distribuição altamente regulado para aquisições de energia via leilões, não tem alternativas que não sejam reivindicar o excludente de responsabilidade, solicitar reequilíbrio econômico-financeiro à ANEEL e socorro para manutenção do seu fluxo de caixa, de forma que a redução de consumo e aumento de inadimplência não afetem o fluxo de pagamentos aos segmentos de geração e transmissão, e adicionalmente mantenha sustentável o negócio distribuição.
Com a ajuda financeira estanca-se o risco de inadimplência generalizada no setor, mas com impactos nas tarifas de energia, decorrentes principalmente dos custos financeiros das operações de tomada de empréstimos junto a instituições financeiras que serão pagas pelas distribuidoras.
Neste ambiente, o setor já teve: (i) em 2002, a Revisão Tarifária Ordinária – RTE para socorro a geradoras e distribuidoras devido aos impactos do racionamento; (ii) a conta ACR para socorro às distribuidoras em 2014 e 2015 para corrigir os equívocos da MP 579; e (iii) em 2020 teremos a conta COVID.
O gráfico a seguir apresenta os valores atualizados dessas contas em relação ao valor inicialmente contabilizado, sem considerar o diferimento no tempo de repasse da RTE às tarifas e os custos financeiros das transações com os bancos na conta ACR.
A atualização foi feita pela aplicação da variação do IPCA a partir das informações da ANEEL para o cálculo da RTE em 2002, e da CCEE para a conta ACR para obtenção dos empréstimos que foram repassados às distribuidoras, e a atual estimativa ainda não confirmada para a conta COVID.
A conta COVID deverá ter o menor valor dentre os socorros históricos concedidos para o reequilíbrio das distribuidoras, sendo que a maior parte dos volumes financeiros previstos para a conta COVID é de antecipação de reajustes tarifários que inevitavelmente ocorrerão, conforme a metodologia vigente para cálculo dos reajustes anuais das distribuidoras. E é provável que estas empresas deverão discutir com a ANEEL algum pedido de revisão tarifária extraordinária no médio prazo. Em resumo: inevitavelmente os consumidores regulados mais uma vez pagarão a conta, mesmo com impactos diferidos no tempo.
O mercado livre também foi impactado com a atual crise. Estimativas da ABRACEEL indicam que os agentes deste mercado deverão arcar com uma perda global de R$ 5 bilhões. Mas há uma enorme diferença que salta aos olhos em relação ao ambiente regulado: não há pedido de socorro dos agentes ao governo ou à ANEEL. A maior parte desta perda financeira está sendo negociada bilateralmente entre vendedores e compradores, o que é natural num ambiente livre, onde as condições contratuais são pactuadas entre as partes de forma voluntária.
E mais ainda: o mercado livre amadurece nos momentos de crise, e aprende lições que levam ao seu fortalecimento e à evolução nos seus procedimentos, conforme a experiencia aprendida nestes momentos pelos geradores, comercializadores e consumidores.
Um exemplo desta evolução é a discussão mais objetiva de quais riscos as partes desejam assumir no momento da contratação, tornando transparente os preços e as condições para cada nível de risco a ser contratado. Em outras palavras, a segurança de mercado sendo definida pelo próprio mercado, com análise livre e criteriosa das contrapartes, com liberdade para gerar soluções sem necessidade de criação de mais regras, além das que já existem, pela ANEEL e CCEE, as quais nem sempre vem ao encontro das corretas necessidades do mercado livre.
Diante dessa realidade, é preciso acelerar os estudos e a implantação de temas previstos nos planos de trabalho do GT Modernização do MME relacionados à ampliação do mercado livre, para que tenhamos a abertura efetiva e segura do mercado.
A figura abaixo mostra, de forma não exaustiva, tendo em vista o pequeno espaço disponível neste artigo e a complexidade do assunto, os temas relevantes que precisam e podem ser encaminhados com brevidade, com uma solução que permita a abertura sustentável do mercado.
Estes são temas prioritários e já estão com discussões avançadas desde a publicação da CP33, e que indicam a viabilização de sua implementação.
É entendimento da maioria dos agentes no mercado de que não há necessidade de maiores discussões com os agentes sobre estes temas, mas sim uma ação interna efetiva das instituições como MME, EPE e CCEE para a sua implementação, mesmo que gradual, e o atingimento da evolução e da modernização do modelo de gestão do setor, e a transição para um mercado totalmente livre.
O modelo de leilões regulados foi um sucesso reconhecido internacionalmente. No entanto, a realidade do setor e da matriz energética em 2004, quando foram implementados, é totalmente diferente da que vivemos em 2020. Evolução tecnológica, presença crescente de recursos energéticos distribuídos, crescimento das fontes renováveis competitivas e não despacháveis, mobilidade elétrica, déficits de potência e capacidade previstos para ocorrerem no médio prazo, ausência de hidrelétricas com reservatórios na expansão, gerenciamento mais efetivo pelo lado da demanda e o sucesso do mercado livre, impõem a alteração do atual modelo e do processo de contratação das distribuidoras.
Quando o mercado livre atingir todos os consumidores, estima-se que cerca de 70% do consumo de energia estará efetivamente fora do portfólio das distribuidoras. Com liberdade para contratar energia para o mercado remanescente e numa empresa comercializadora regulada, sem necessitar de reconhecimentos de exposições involuntárias, o setor de distribuição não precisará pedir ajuda para solução de seus problemas de contratação de energia.
Precisamos de urgência na tomada de decisões para que a reforma do setor nos itens mais prioritários possa se tornar realidade, sinalizando ao mercado a disposição política e técnica do governo e do MME na modernização do modelo e na atratividade maior para o financiamento e investimentos nos segmentos de geração, transmissão e distribuição de energia.
José Antonio Sorge é sócio administrado da comercializadora Ágora Energia
Fonte: Canal Energia
08.06.2020