Falta de cronograma prende brasileiro na vanguarda do atraso dos mercados modernos de eletricidade, escreve Rodrigo Ferreira
O Brasil acumula histórias de oportunidades perdidas, a ponto de o economista e professor Roberto Campos, ex-senador, diplomata e ministro do Planejamento, conhecido por resumir a alma e o comportamento da sociedade em frases irônicas, mas assertivas, cunhar a célebre sentença que o Brasil nunca perde a oportunidade de perder uma oportunidade.
No setor elétrico, a corroboração dessa triste, mas infelizmente muito verdadeira frase, começou em 8 de julho de 1995. Nesse dia, o Diário Oficial da União (DOU) estampou o ato de promulgação da Lei 9.074, que estabeleceu normas para outorgas e prorrogações de concessões no setor elétrico e deu os primeiros passos legais para abertura do mercado de energia elétrica no Brasil.
A decisão legislativa deu aos consumidores brasileiros, naquela época, a expectativa de serem vanguardistas e protagonistas em um movimento global de liberalização dos mercados de energia elétrica. Isso porque, somente no ano seguinte, o Parlamento Europeu editou uma diretiva com regras para a abertura completa do mercado interno de eletricidade, começando ali o mesmo processo aqui iniciado no ano anterior. Em linhas gerais, a abertura do mercado significava a inserção de concorrência na venda de eletricidade para o consumidor final, processo similar ao ocorrido, não por coincidência, também em 1995, no mercado de telecomunicações do Brasil.
Essa magnífica iniciativa, que outorgou ao poder concedente, no caso o Ministério de Minas e Energia, o poder de estender indistintamente a todos os consumidores brasileiros a possibilidade de escolha de seus fornecedores de energia elétrica “oito anos após a publicação” da lei, ou seja, a partir de 8 de julho de 2003, porém nunca se concretizou.
Para resolver esse atraso, basta tinta na caneta, para estabelecer o cronograma de abertura do mercado de energia brasileiro. Esse é um passo inadiável, seja essa caneta a do Ministério de Minas e Energia, assinando uma portaria, como autoriza a Lei 9.074/1995, ou a do Congresso Nacional, mais especificamente a Câmara dos Deputados, que pode confirmar a aprovação do PL 414/2021, já encaminhado pelo Senado Federal.
O cronograma é essencial porque o setor elétrico é pródigo em postergar decisões, alegando justificativas paroquiais, sempre renovadas. Com uma data oficialmente publicada, os representantes dos múltiplos segmentos, agrupados em quase 30 associações de classe, deixam de empilhar problemas e passam a trabalhar em torno do que é fundamental para o consumidor e para o funcionamento eficiente do mercado de energia elétrica. E, no rol de ajustes pertinentes e recomendados, todos já mapeados há anos, não há nada intransponível, de forma que tudo pode ser feito, por via regulatória ou legal, nos anos de transição até a data cravada, assegurando uma abertura equilibrada para todos. A Abraceel defende, baseada em estudos com metodologias transparentes e disponíveis para consulta, que é possível abrir o mercado de energia em janeiro de 2026[1].
Em um mercado competitivo, o exercício do direito de escolha resulta em preços mais baixos, produtos mais adequados, ofertas exclusivas, inovações e novas experiências aos usuários finais. No Brasil, apenas pouco mais de 30 mil consumidores[2], entre 89 milhões, podem obter tais benefícios, na medida que a atual régua normativa os autoriza a comprar energia elétrica no mercado livre. Por mais que os atuais consumidores livres representem 38% do consumo nacional de energia elétrica, eles são apenas 0,04% do total de unidades consumidoras.
Na ponta do lápis, o mercado livre de energia faz grande diferença na vida do consumidor. Uma diferença de R$ 35,8 bilhões, segundo um estudo[3] que a Abraceel lançou este ano. O trabalho cruzou dados relativos a consumo e preço e avaliou a dimensão da economia para todos os consumidores que atualmente estão presos no mercado regulado de baixa tensão e que poderiam obter energia mais barata no mercado livre.
Dois grupos socialmente muito relevantes seriam beneficiados com redução na conta de luz. Um deles é formado por 5 milhões de residências de baixa renda que atualmente são beneficiados pela tarifa social, benefício governamental que concede descontos de até 65% da fatura, mas que poderiam obter redução adicional no preço da fatura de energia de 7,5% a 10,0%. Outro comporta o “Brasil esquecido”, assim chamado por ser composto por pessoas que nos últimos anos não encontraram alternativas para reduzir os valores da energia consumida, pois não se encaixam nas regras de acesso à tarifa social e ao mercado livre de energia e não têm recursos próprios, capacidade de crédito ou telhado para instalar sistemas de geração distribuída solar fotovoltaica. São mais de 150 milhões de brasileiros, agrupados em cerca de 73 milhões de unidades consumidoras, que incluem as famílias de classe média e mais de 90% dos pequenos comércios, indústrias e empreendedores rurais.
Reduzir o valor da conta de energia é oferecer mais bem-estar às famílias e condições de aumentar a produtividade e competitividade das empresas. A escalada das tarifas elétricas no mercado regulado nos últimos anos causou dificuldades na gestão do orçamento familiar dos brasileiros. Pesquisa do Datafolha[4] feita para a Abraceel detectou que 85% dos entrevistados passaram a economizar energia elétrica para reduzir o valor da conta de luz, 72% deixaram de comprar itens que consumiam para pagar a conta de luz e 44% deixaram de pagar alguma conta de consumo elétrico no último ano.
Impactos semelhantes são percebidos pelo setor produtivo. Por não terem acesso ao mercado livre de energia, empresas brasileiras dos setores de comércio e indústrias já desperdiçaram R$ 172 bilhões desde 2003[5], como mostra o Desperdiçômetro, calculadora da Clarke Energia que mensura essa perda de oportunidade. Outras evidências estão em recente pesquisa da CNI[6]. Ela mostrou que 78% da indústria usa a energia elétrica como principal fonte energética, 75% afirmaram que o aumento do custo da energia elétrica teve impacto sobre seus custos totais e que o aumento médio percentual dos custos com eletricidade no custo total de produção foi de 13%. Por isso, 56% das indústrias que estão no mercado regulado e poderão migrar para o livre em janeiro de 2024, de acordo com a Portaria MME 50/2022, manifestaram interesse em fazer essa mudança.
O brasileiro anseia pela abertura completa do mercado de energia elétrica. É o que diz a Pesquisa de Opinião do Datafolha[7], onde 8 em cada 10 brasileiros manifestaram que gostariam de ter o direito a portabilidade da conta de luz. Há mais de 500 comercializadoras habilitadas para atuar na compra e venda desse insumo, dos mais de 60 delas são varejistas, uma categoria de empresas certificadas para auxiliar os consumidores de menor porte a aproveitar as inúmeras vantagens de um mercado competitivo de energia.
Para concluir a abertura do mercado, os ajustes que podem ser feitos, já mapeados, podem ser tratados nos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, matérias que precisam ser pautadas no segundo semestre deste ano. Adicionalmente, o Ministério de Minas e Energia acabou de publicar uma nota técnica indicando boas diretrizes para o processo de renovação das concessões de parte das distribuidoras de energia cujos contratos estão próximos de vencer, incluindo nesse norte demandas dos consumidores como direito à portabilidade da conta de luz, acesso e uso dos dados particulares de consumo e maior acesso a digitalização.
Na Alemanha, por exemplo, um clube de futebol passou a oferecer energia elétrica 100% renovável, contratos com preços garantidos e recompensas em dinheiro para cada gol e título do time. Na Espanha, com base em pesquisas sobre anseios e comportamentos dos consumidores, empresas passaram a oferecer energia grátis durante um mês por ano ou um dia por semana. Em Portugal, ao adquirir eletricidade, gás canalizado ou combustíveis automotivos, os consumidores passaram a receber cupons de desconto e cashback para gastar em redes de supermercados. Na Austrália, uma campanha incentivou os consumidores a pesquisarem os preços dos concorrentes em um portal de buscas mediante uma recompensa em dinheiro para abater o valor da conta de energia, independentemente de efetivar a troca de empresa. Preços mais baixos, energia 100% renovável, comunicação intensiva, descontos, prêmios em dinheiro e outras vantagens são marcas do mercado livre de energia. Mas, há 20 anos, o consumidor brasileiro está parado no tempo, deixou de ser protagonista de uma revolução vivida em 1995 para estar preso na vanguarda do atraso dos mercados modernos de eletricidade.
Rodrigo Ferreira é presidente-executivo da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel)
Artigo originalmente publicado no jornal Poder360.
[1] https://abraceel.com.br/biblioteca/estudos/2022/11/estudo-completo-abraceel-e-ey/
[2] https://abraceel.com.br/topico/biblioteca/boletim/
[3] https://abraceel.com.br/biblioteca/apresentacoes/2023/05/portabilidade-da-conta-de-luz-justica-social-e-transicao-energetica-justa/
[4] https://abraceel.com.br/topico/pesquisas/
[5] https://desperdicometro.com.br/
[6] https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/infraestrutura/56-das-industrias-do-mercado-cativo-desejam-migrar-para-o-mercado-livre-de-energia/
[7] https://abraceel.com.br/pesquisas/2022/12/pesquisa-de-opiniao-publica-energia-eletrica-de-2022/