Experiência internacional mostra que é racional arcar com custo determinado no início para ter ganhos maiores durante um longo período
Sou filho e neto de Marias e tenho certeza de que elas, se tivessem a opção, escolheriam o próprio fornecedor de energia elétrica. Elas já fazem isso com a conta de telefone – minha avó, de 92 anos, usa smartphone e whatsapp; minha mãe recentemente trocou sua operadora. Por que não fariam com a conta de luz?
Ocorre que “Dona Maria” virou expressão setorial para definir o consumidor supostamente inerte, que fica onde está. Aquele que não trocará de fornecedor, que continuará cativo, que não sabe comparar e escolher, que precisa ser tutelado por ser hipoteticamente incapaz de optar por melhores condições. Dona Maria, segundo alguns, poderá pagar custos elevados em razão da opção de outros consumidores pelo mercado livre. É a tal narrativa de “o mercado de energia vai abrir e deixar um custo excessivo para quem não migrar”.
Esse discurso está centrado principalmente nos famosos “contratos legados”. Contratos regulados de compra de energia firmados pelas distribuidoras para atender seus mercados. Contratos de até 30 anos, indexados pela inflação, muitas vezes para compra de tecnologias específicas determinadas por leis ou escolhidas pelo governo. Com a abertura de mercado de energia, alguns consumidores optarão por se libertar do mercado cativo, mas os contratos permanecerão até findarem seus prazos. Daí vem a pergunta: quem assumirá os custos desses contratos caso a contratação das distribuidoras supere as demandas de seus mercados?
Essa discussão ganhou novos números no dia 5 de agosto com a divulgação parcial do robusto estudo da PSR produzido para o Ministério da Economia. Lá estão estimativas de eventuais custos de transição nos cenários de abertura. Segundo a consultoria, no caso de abertura faseada, com abertura da alta tensão em 2024 e baixa tensão a partir de 2026, com custos rateados entre todos os consumidores, livres e cativos, cenário proposto no PL 414, o custo médio seria de R$ 4 / MWh. Apenas R$ 4 / MWh.
Faz sentido dizer “apenas” diante da magnitude dos valores praticados e dos benefícios previstos. Hoje, a tarifa média de fornecimento de energia elétrica do consumidor residencial é de R$ 844 / MWh, com impostos, segundo dados da Aneel. Ou seja, a opção por um modelo comercial mais eficiente, capaz de oferecer liberdade e protagonismo ao consumidor, teria um custo médio de 0,47% nas tarifas residenciais nesse cenário específico de abertura da PSR.
Contudo, quando analisamos custos precisamos também olhar os benefícios. Segundo estudo da Abraceel, em média o preço da energia no mercado livre é cerca de 27% menor do que no mercado cativo, causando uma redução global na conta de energia de aproximadamente 15% para aqueles que optarem pelo mercado livre. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) aponta em sua contribuição de apoio à CP 131 que “as tarifas finais chegam a cerca de 20% menores, em relação ao mercado regulado”. Portanto, temos um custo de R$ 4 / MWh para uma economia superior a R$ 100 / MWh. A Dona Maria não gostaria de refletir sobre essa oferta?
Um ponto relevante é que não há certeza se, de fato, haverá sobrecontratação. Ou, se ocorrer, quando isso se dará e em qual magnitude. Na proposta do Ministério de Minas e Energia de abertura da alta tensão em 2024, liderada pelo Ministro Adolfo Sachsida, os estudos da Abraceel apontam que a medida não gera sobrecontratação para as distribuidoras. Mais do que isso, se a energia de Itaipu puder ser vendida no mercado livre, a eventual sobrecontratação também desaparece no cenário de abertura total do mercado, que na proposta da Abraceel considera todos livres em 2026.
Também é importante pontuar que nem sempre a sobra de contratos significará prejuízos para distribuidoras e consumidores. O resultado dependerá sempre do valor de compra e o valor de venda dessa energia. Se comprou barato e vendeu caro, ótimo, isso se reverte em benefício aos consumidores. Caso contrário, esses arcam com os custos.
Nos últimos dez anos, por exemplo, caso o mercado de energia fosse totalmente livre, a liquidação de sobras contratuais no mercado de curto prazo resultaria em ganho ao consumidor, de acordo com estudo feito pela Abraceel. Isso porque o preço de liquidação de diferenças, o PLD, foi R$ 52 / MWh maior que o preço médio de compra de energia pelas distribuidoras no período. Dessa forma, o benefício totalizaria R$ 10 bilhões por ano aos consumidores ao longo de dez anos. Isso mesmo, R$ 10 bilhões ao ano, caso o mercado estivesse aberto, tudo calculado com base nos preços efetivamente realizados.
Além disso, os estudos não consideram aprimoramentos nos tais “vasos comunicantes” entre os ambientes regulado e livre. A melhoria dos diversos mecanismos de gestão da carteira de contratos das distribuidoras (MVE, MCSD, acordos bilaterais etc) que podem e devem ser azeitados, para permitir mais facilidade na liberação de sobras contratuais. Isso inclui também a criação de novos mecanismos para reduzir o estoque de energia comprada pelas distribuidoras, oferecendo maior liberdade na sua gestão contratual. Esse é um dos pontos mais subestimados nas discussões e certamente um dos principais para reduzir a pressão sobre os contratos legados, permitindo mais fluidez de energia do ambiente regulado para o livre.
Estudos similares já realizados pela Abraceel chegam a resultados muito parecidos com os da PSR. Considerando a manutenção do regime de cotas da energia de Itaipu para as distribuidoras dos submercados Sul e Sudeste-Centro-Oeste e com o cronograma de abertura faseado proposto (liberdade para consumidores em alta tensão em 2024 e em baixa tensão em 2026), o custo médio de eventual sobrecontratação calculado pela Abraceel também é de R$ 4 / MWh. Com Itaipu vendendo livremente em todo o mercado, esse custo médio cai para R$ 0,27 / MWh. Vinte e sete centavos!
Por isso, há tranquilidade em afirmar: é possível abrir o mercado sem deixar custos para a Dona Maria. A sobrecontratação pode ser um “não problema”. As análises técnicas, inclusive, apontam que poderemos ter que lidar com cenários de subcontratação, e não sobrecontratação, reafirmando a importância de colocar números para combater mitos. Isso tudo sem mencionar que, com a abertura total do mercado, é possível obter redução de R$ 210 bilhões nos gastos com energia até 2035 que, reinjetados na economia, são capazes de gerar mais de 600 mil novos empregos, segundo parâmetros do BNDES.
A experiência internacional mostra que muitos países optaram por pagar custos altos de transição na liberalização total de seus mercados com a visão clara de que é racional arcar com um custo determinado no início para ter ganhos muito maiores durante um longo período. Felizmente, aqui no Brasil podemos fazer essa transição sem custos, dada a janela de oportunidades única que temos com a descotização da energia da Eletrobras, términos de contratos térmicos e, quiçá, com Itaipu vendendo também no mercado livre.
O que não podemos é perpetuar a decisão de não avançar. Sem uma data definida para a abertura do mercado, com um cronograma que estabeleça a necessária antecedência para as mudanças, o modelo atual já esgotado se perpetua, novas contratações de energia de longo prazo – novos legados – são firmadas pelas distribuidoras, e o consumidor continua sem opção, cativo, pagando a tarifa sem nem saber o que está lá. Esse sim é o verdadeiro espiral da morte que precisamos combater para tirar de lá a Dona Maria, eu e você.
Bernardo Sicsú é vice-presidente de Estratégia e Comunicação da Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia).
Artigo originalmente publicado no Poder360.