Sou da época em que se ficava noivo. Eu mesmo fiquei noivo por três anos: anunciei minhas intenções, pedi minha esposa em casamento ao pai dela e estabelecemos uma data para o casório, no caso, três anos seriam, na nossa visão, tempo suficiente para realizar as providências, como encerrar a faculdade, montar apartamento e arrumar um bom emprego. Era para isso que se ficava noivo: estabelecer uma data e executar um planejamento para que essa importante decisão da vida pudesse ser implementada com segurança.
Mas temos cada vez mais os namorados “preocupados”. Esses têm sempre uma lista de providências a tomar antes de se comprometerem com uma data. Eles querem muito se casar com a moça a quem enrolam por anos, mas são tão responsáveis que precisam, antes de marcar a data do casório, comprar apartamento próprio, TV de 75 polegadas, carro zero km e fazer aquele doutorado no exterior, afinal, casar é uma decisão muito importante. E nesse discurso empurram com a barriga a pobre coitada da namorada fiel.
No setor elétrico não é diferente. Tem os noivos comprometidos e os namorados “preocupados”. Tem a turma que topa estabelecer uma data e fazer algo acontecer, no caso me refiro à abertura do mercado; e tem a turma que quer muito a abertura, mas aparece sempre com uma lista de ações minuciosas que precisa, necessariamente, ser cumprida antes de se estabelecer uma data, ainda que sejam quatro anos de noivado. No mundo elétrico, os namorados “preocupados” preferem manter milhões de consumidores no mundo cativo, do monopólio e da falta de transparência, com receio de dar um passo a frente e usufruir dos benefícios de uma nova vida.
Nessa discussão eterna da abertura, que já dura cerca de 27 anos, felizmente a moça que sempre foi enrolada e era bonita e viçosa acabou virando uma mulher madura, ainda cheia de vida, experiente e com muitos planos. Ainda disposta ao casamento. É assim que o Mercado Livre hoje se apresenta, como uma solução moderna, eficiente e madura, contudo, urgente, mais do que nunca.
A Lei 9.074 de 1995 estabelece que o poder concedente pode abrir o mercado de energia para todos os brasileiros oito anos após a promulgação, mas não estabelece quando exatamente. Foi o noivado sem data marcada para o casório, e os oitos anos seriam o tempo para que o setor pudesse tomar as providências necessárias para uma abertura equilibrada, com respeito aos contratos e segurança jurídica. Passados 27 anos, estamos basicamente na mesma, os namorados preocupados não se cansam de apresentar listas sempre crescentes à sonhada marcação da data do casório do consumidor com a liberdade de escolha.
O setor elétrico se acostumou com isso. Pelo menos o atual setor elétrico, porque lá em 1995, a turma que formulava política energética era mais decidida e pragmática. Aliás, precisamos agradecer os que hoje muitos chamam, sem conhecer seu legado, de “eletrossauros”. Foram eles que construíram, por exemplo, o engenhoso MRE e que as gerações que vieram depois passam anos dizendo que o mecanismo precisa ser aperfeiçoado, mas não tomam medidas efetivas para isso. Foram eles que criaram nosso parque hídrico espetacular, e que no fim do século passado estavam tão atualizados sobre mercados de energia que apresentavam propostas alinhadas à de mercados que hoje chamamos de modernos.
Eles estavam, lá em 1995, diminuindo o peso do Estado no setor, criando a figura do produtor independente, do consumidor livre e do comercializador de energia. Estavam criando uma governança, com a fundação da Aneel, do então MAE (Mercado Atacadista de Energia) e do Operador Nacional do Sistema Elétrico, o nosso ONS, descentralizando a operação da empresa estatal dominante. Tudo isso, apontando para um modelo comercial de Mercado Livre, com o consumidor no centro do modelo setorial, dando o drive da expansão, impondo racionalidade e eficiência na contratação de energia. Era o setor que os “eletrossauros” sonhavam e pretendiam para o Brasil. Alguns desses líderes setoriais do fim do século passado ainda estão por aí, tendo que conviver com a burocracia do avanço, com a narrativa do atraso, possivelmente frustrados de ver o espetacular setor elétrico brasileiro tão atrasado, caro para a sociedade e capturado pelo lobby do interesse próprio em detrimento do espírito de país que o setor precisa.
Passados 27 anos, estamos aí, na mesma. Em pleno século 21, circulando listas e mais listas de providências para dar ao consumidor uma data para que ele seja livre, convivendo com a discussão enviesada, com narrativas que, muitas vezes, não se sustentam na abertura de premissas de estudos calibrados para criar problemas.
Temos agora a oportunidade de dar espaço para os noivos comprometidos que estão finalmente dispostos a estabelecer uma data e trabalhar para que até lá as eventuais providências necessárias para o casório do consumidor com a liberdade possa ser celebrado. Temos a oportunidade de dar continuidade ao legado dos nossos amigos “eletrossauros” do final do século passado e entregar ao país um setor moderno, atual, em linha com o que se planejava em 1995.
É com esse espírito que a Abraceel vai participar das discussões finais relativas ao PL 414/2021. É nessa toada que os comercializadores vão participar também da Consulta Pública 137 aberta pelo Ministério de Minas e Energia, buscando apresentar um road map completo das ações necessárias para que o casório aconteça em 2026, com segurança, equilíbrio e respeito aos contratos existentes. Temos hoje a visão clara e límpida de que a abertura integral da baixa tensão é possível e viável por meio de lei ou Portaria Ministerial, amparada por medidas infralegais complementares e bem estruturadas. Estamos trabalhando para construir uma ponte entre o passado e o futuro e vamos fazer isso com foco na modernização setorial, no desenvolvimento do nosso país e para o consumidor brasileiro de energia elétrica. Sugiro preparar a roupa, pensar no presente, porque em 2026 teremos um casamento.
Rodrigo Ferreira é presidente executivo da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel).
Artigo originalmente publicado no Canal Energia.