Fato é que na corrida global da transição energética da eletricidade o Brasil tem uma vantagem enorme em relação ao resto do mundo, já que a nossa transição depende menos de dinheiro e mais de políticas públicas.
Como o conceito deixa claro, transição é um momento de passagem, de uma condição a outra. Portanto, tem fim. Especificamente, a transição energética é uma meta global, mas o fato é que países e regiões do mundo têm desafios bem diferentes para chegarem ao final dessa jornada.
Já a palavra “energética” envolve um conjunto amplo de elementos, que inclui mobilidade, produção industrial, combustíveis, autossuficiência de recursos energéticos e, principalmente energia elétrica. Sobre, especificamente, a transição energética da eletricidade, o Brasil tem uma condição muito especial, que nos habilita a ocupar o pódio dessa corrida mundial.
No mundo, o conceito de transição energética é caracterizado principalmente por três “Ds”: descarbonização, descentralização e digitalização. A sociedade em geral tem um bom entendimento sobre o primeiro D, de descarbonização da eletricidade, que nada mais é do que substituir fontes de geração de energia com combustíveis fósseis por geração renovável, produzida da água, do vento, do sol e de biomassas. No limite, é conseguir capturar totalmente as emissões geradas por fontes fósseis.
Esse é um tremendo desafio para a Europa e Ásia, que certamente demandará décadas de investimentos expressivos e, ainda assim, difícil de ser totalmente alcançado, já que dinheiro ainda não compra recursos naturais abundantes.
E aqui no Brasil? Na transição energética da descarbonização da eletricidade, estamos praticamente na linha de chegada. Nossos recursos naturais estão entre os melhores do mundo, bastando dizer que, em 2022, 92% da geração de eletricidade no Brasil se deu com fontes renováveis.
Contudo, a transição energética não acaba aí. Dos “Ds” de descentralização e digitalização, o Brasil ainda está distante. Ao final da transição energética, o consumidor deverá gerar ou comprar sua energia de forma descentralizada e fazer gestão do seu consumo na palma da sua mão, por meio de aplicativos, por exemplo. A boa notícia é que atingir esses “Ds” depende, basicamente, de políticas públicas que se resolvem com algumas “canetadas”.
Para a descentralização, não estamos na linha de partida. Em 2022, 42% da energia consumida aqui foi gerada ou contratada de forma descentralizada. Isso se deve ao avanço da geração distribuída solar fotovoltaica e, principalmente, do mercado livre de energia, no qual consumidores podem escolher o seu supridor. Atualmente, 38% da energia consumida no país, ou 89% do consumo industrial, é adquirida no mercado livre por apenas 11 mil consumidores ou 0,03% do total. Diferentemente da Europa, Austrália, Coréia do Sul, Japão e parte dos Estados Unidos, onde todos os consumidores são livres.
Já a maior parte da população brasileira está restrita em um ambiente centralizado em que o governo define qual energia o consumidor deve comprar em leilões que geram contratos indexados à inflação por até 30 anos.
Em resposta a uma consulta pública, quase 60 entidades contribuíram e atestaram viabilidade para garantir a universalização do acesso ao mercado livre de energia com segurança jurídica, respeito aos contratos e equilíbrio para agentes do setor elétrico e consumidores. Não por menos, a ampliação do mercado livre de energia no Brasil para todos os brasileiros está na pauta prioritária da Confederação Nacional da Industria (CNI) para o ano de 2023.
Já o “D” da digitalização, em parte, anda junto da descentralização. Não por menos 100% dos consumidores livres do Brasil já têm sua medição digital, ainda que essa não seja uma condição necessária para a liberdade de escolha. Evidentemente, um consumidor que opta por comprar sua energia de forma descentralizada, com autonomia e poder no mercado, dá valor para uma medição inteligente, na palma da mão.
Um consumidor livre com medição digital e via Internet consegue administrar a eletricidade de sua casa de forma pré-estabelecida e até ganhar dinheiro com isso, participando de programas, em conjunto com os comercializadores de energia, em que equipamentos desligam ou diminuem o uso nas horas do dia em que a energia custa mais caro, sendo o consumidor remunerado pela energia que deixou de usar do sistema. Isso já é uma realidade em diversos locais do mundo.
Fato é que na corrida global da transição energética da eletricidade o Brasil tem uma vantagem enorme em relação ao resto do mundo, já que a nossa transição depende menos de dinheiro e mais de políticas públicas. Depende de decisões que coloquem o consumidor no centro, como protagonista, e permitam modernizar nosso mercado de eletricidade, o equiparando ao de telecomunicações, por exemplo, no qual consumidores escolhem e fazem a portabilidade da sua conta com grande facilidade e sempre em busca de melhores serviços e preços mais competitivos.
Portanto, por aqui, a chave da transição energética da eletricidade nada mais é do que tinta na caneta.
Rodrigo Ferreira é presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel)
Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo.