O ano era 1995 e o Brasil estava na vanguarda dos mercados de energia. Dono de uma matriz exemplar, dominada pela hidreletricidade com forte apoio das térmicas, o país passava por uma revolução no setor elétrico. Nos idos da década de 90, estávamos criando a figura do produtor independente, a agência reguladora, o Operador Nacional do Sistema e o Mercado Atacadista de Energia, iniciávamos a privatização também da distribuição e criávamos o mercado livre de energia.
Nesse contexto, a lei 9074/1995 foi um divisor de águas, seguida da Resolução 265/1998 da Aneel, publicada no dia 14 de agosto daquele ano, documento que foi uma espécie de certidão de nascimento do comercializador de energia, por tê-la regulamentado. Estávamos num movimento similar a de mercados da Europa e América do Norte. A Abraceel nascia nesse ambiente, já no ano de 2000 para reunir comercializadores de energia elétrica e, ao longo dos anos, passamos a atuar nos segmentos de gás natural, etanol e créditos de carbono.
O aniversário simbólico de 25 anos de atuação dos comercializadores é marcado por acelerada movimentação comercial e transformação tecnológica, bem como por propostas para o devido aperfeiçoamento no arcabouço regulatório. No cenário mercadológico, a atividade cresce de forma expressiva e atrai a cada ano novos players relevantes, fruto das oportunidades que se descortinam com a inexorável abertura do mercado elétrico para todos os consumidores. Essas empresas passaram a movimentar quase 40% de toda a energia elétrica consumida no Brasil. Há cerca de 34 mil unidades consumidoras participando no mercado livre de energia, agrupadas em pouco mais de 12 mil empresas, que já compram mais de 60% de sua energia elétrica diretamente de comercializadoras.
Atualmente, a Abraceel representa 109 comercializadoras de energia e cerca de 60 já estão habilitadas a serem varejistas, autorizadas a vender aos clientes de menor porte. No curto prazo, as varejistas vão cumprir papel essencial com a abertura do mercado de energia em alta tensão, o que já ocasiona movimentação frenética no mercado. No longo prazo, serão os agentes da transformação do mercado elétrico em um amplo mercado de varejo, com acirrada competição pela conta de energia dos consumidores.
A Portaria 50/2022 universalizou o acesso ao mercado livre para todos os consumidores de energia em média e alta tensão, antes restrito àqueles com demanda maior que 500 kW. A partir de janeiro de 2024, também os de menor porte do Grupo A, com demanda menor de 500 kW, poderão migrar ao mercado livre, desde que o façam via um agente varejista. O comercializador varejista é responsável por representar consumidores de energia junto à CCEE, simplificando todo o processo na medida em que pode assumir tarefas de atender normas, cadastros, prazos e detalhes técnicos, deixando o consumidor livre dessas obrigações.
Com a esperada abertura completa do mercado de energia já no horizonte, o que pressiona por estratégias voltadas ao varejo, os comercializadores vêm diversificando frentes de negócios, buscando inovação, ampliando o escopo de atuação e mirando os anseios de consumidores mais exigentes em um mercado que conviverá com competição cada vez mais acirrada.
Há alguns anos, o comercializador de energia deixou de ser apenas aquela empresa especializada em comprar e vender energia elétrica, gerenciar riscos e desenvolver produtos de energia. Com visão de longo prazo, tornou-se também investidor, principalmente em geração, ganhando relevância para a expansão da matriz renovável de energia elétrica. Os números do BNDES confirmam esse novo cenário. Do total dos projetos eólicos e solares financiados pelo banco de fomento entre 2018 e 2022, 52% foram suportados por comercializadoras, consolidando a importância delas em uma nova lógica que vive o setor elétrico brasileiro, com a expansão ocorrendo independente dos leilões regulados.
Mas a trajetória do comercializador de energia elétrica no Brasil, se agora promete ser de crescimento e inovação, não foi fácil ao longo desses 25 anos de atividade. Ano após ano, os obstáculos foram superados, com empreendedorismo e visão de futuro, e agora, numa fase mais madura, os comercializadores estão entre as grandes empresas do setor elétrico, com diversificação e pesados investimentos em geração, novos produtos, digitalização, comunicação e marketing. Os comercializadores de energia serão os principais agentes que vão impulsionar uma forte competição no mercado, muito maior do que aconteceu na telefonia nas décadas passadas, pois o número de empresas aptas a disputar a conta do consumidor é enorme, além de termos a favor da competição a tecnologia e mídias digitais.
Além do empreendedorismo e da visão de futuro, o crescimento do mercado e as perspectivas positivas para os próximos anos derivam também da evolução da legislação e da regulação nesse período. A consistente e constante edição de resoluções regulatórias, bem como de aperfeiçoamentos legais, trouxe a atividade de comercialização de energia até o atual estágio de desenvolvimento. Nos anos anteriores, diversas leis e normas regulatórias forjaram o comercializador e o ambiente de negócios destinado a ele, como a Lei 9.074/1995, que cria o mercado livre, a Lei 9.427/1996, que delega à Aneel a autorização do comercializador, e a Lei 10.848/2004, que instituiu o então chamado “novo modelo do setor elétrico”.
Desde 1998, quando da Resolução 265, tem sido marcante a produção regulatória da Aneel, o que escalou e sedimentou o avanço da atividade de comercialização de energia no Brasil. Novos passos estão em curso nesse momento, em fases de consultas públicas e discussões setoriais, de forma que o mercado avance de um modelo de atacado e passe a funcionar em um modelo de varejo, tão logo a abertura completa do mercado elétrico aconteça.
Outas resoluções, além da 265/1998, que estabelece as condições para o exercício da atividade de comercialização de energia elétrica, foram importantes para essa trajetória. Uma delas é a Resolução 552/2002, que estabelece os procedimentos relativos à liquidação das operações de compra e venda de energia elétrica, no mercado de curto prazo. Outra é Resolução 166/2005, que estabelece as disposições consolidadas relativas ao cálculo da tarifa de uso dos sistemas de distribuição (TUSD) e da tarifa de energia elétrica (TE). Mais recentemente, temos a Resolução 1.009/2022, que estabelece as regras atinentes à contratação de energia pelos agentes nos ambientes de contratação regulado e livre.
Essas resoluções normativas estão na lista das mais importantes normas regulatórias editadas em prol da atividade de comercialização de energia elétrica no Brasil nos últimos 25 anos, segundo avaliação realizada pela Abraceel, confirme listado abaixo.
- REN 265/1998: Estabelece as condições para o Exercício da Atividade de Comercialização de energia elétrica.
- REN 290/2000: Homologa as Regras do Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE) e fixa as diretrizes para a sua implantação gradual.
- REN 594/2001: Estabelece a metodologia de cálculo das tarifas de uso dos sistemas de distribuição (TUSD) de energia elétrica.
- REN 552/2002: Estabelece os procedimentos relativos à liquidação das operações de compra e venda de energia elétrica, no mercado de curto prazo.
- REN 109/2004: Institui a Convenção de Comercialização de Energia Elétrica.
- REN 166/2005: Estabelece as disposições consolidadas relativas ao cálculo da TUSD e da tarifa de energia elétrica (TE).
- REN 198/2005: Aprova o Estatuto Social da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
- REN 247/2006: Estabelece as condições para a comercialização de energia elétrica incentivada com unidade ou conjunto de unidades consumidoras cuja carga seja maior ou igual a 500 kW.
- REN 376/2009: Estabelece as condições para contratação de energia elétrica, no âmbito do Sistema Interligado Nacional – SIN, por Consumidor Livre.
- REN 545/2013: Estabelece disciplina atinente ao desligamento de agentes e à impugnação de atos praticados na CCEE.
- REN 570/2013: Estabelece os requisitos e procedimentos atinentes à comercialização varejista.
- REN 622/2014: Dispõe sobre as garantias financeiras e a efetivação de registros de contratos de compra e venda de energia elétrica.
- REN 701/2016: Estabelece as condições e os procedimentos para o monitoramento do mercado.
- REN 799/2017: Estabelece critérios e procedimentos no caso de identificação de erros no processo de formação do Preço de Liquidação de Diferenças – PLD.
- REN 843/2019: Estabelece critérios e procedimentos para elaboração do Programa Mensal da Operação Energética – PMO e para a formação do PLD.
- REN 904/2020: Estabelece os critérios e condições do Mecanismo de Venda de Excedentes e dos mecanismos de gestão de contratos de comercialização de energia elétrica provenientes de novos empreendimentos de geração.
- REN 1009/2022: Estabelece as regras atinentes à contratação de energia pelos agentes nos ambientes de contratação regulado e livre.
A abertura completa do mercado de energia é o grande objetivo dos comercializadores e demais agentes que participam do mercado livre de energia elétrica. Essa política pública, considerada como inexorável há um tempo, ainda precisa acontecer. O ato mais recente nesse sentido foi a Consulta Pública 137/2022 do Ministério de Minas e Energia (MME), que coletou contribuições da sociedade e do mercado para um calendário em duas fases – em janeiro de 2026 para todos os consumidores de energia em baixa tensão, exceto para os rurais e residenciais, e em janeiro de 2028 para estes dois grupos restantes – objetivando universalizar para todos os consumidores o direito de escolher o fornecedor de energia, acabando com o monopólio privado vigente atualmente. Essa consulta pública mostrou amplo apoio com a abertura total do mercado. Das 55 contribuições entregues ao MME, 53 delas concordaram com esse movimento nos termos propostos.
Com a abertura completa do mercado de energia no para-brisa, os comercializadores trabalham com a Abraceel e a Aneel em algumas medidas de aperfeiçoamento do processo de migração, da atividade de comercialização varejista e da segurança do mercado. A Aneel vem respondendo à altura e, em agosto, avançou em dois importantes programas. Em um ato, a agência reguladora abriu consulta pública para aprimorar a comercialização varejista, buscando preencher lacunas normativas e simplificar processos e etapas para o consumidor migrar do mercado regulado para o livre. Em outro, a Aneel aprovou relatório com as conclusões da segunda fase da Consulta Pública 11/2022, etapa que restava para que seja possível iniciar testes de um novo programa de monitoramento prudencial do mercado de energia eletrica. São iniciativas muito positivas para atender as demandas de um mercado em ascensão.
A Abraceel tem a expectativa que as simplificações no processo de migração, os aprimoramentos da atividade de comercialização varejista e o reforço na segurança do mercado pavimentem ainda mais o desenvolvimento da atividade de comercialização de energia elétrica do país, fortalecendo o desenvolvimento sustentável do mercado livre e, consequentemente, a oferta de energia elétrica, insumo essencial para o crescimento econômico e para o bem-estar da sociedade, com menores preços e melhores produtos e serviços ao consumidor. No mercado livre, o foco é o consumidor, que passará a ser um novo agente do mercado, emponderado pela tecnologia e pela liberdade de escolha do seu supridor de eletricidade.
Rodrigo Ferreira é presidente-executivo da Associação Abraceel
Artigo originalmente publicado na edição de outubro de 2023 da Revista do Cigre.