Desde que os efeitos financeiros da pandemia se fizeram notar – em alguns setores com grande contundência – aqueles mais organizados, dentre os quais se incluem os segmentos da cadeia do setor elétrico e mesmo o seu aparato institucional, têm sido compelidos a se manifestar sobre o que fazer, como fazer, o tamanho do “rombo”, e assim por diante.
Da parte institucional, é verdade, além das declarações protocolares de praxe, houve a atuação do governo, por meio da edição da MPV 950, que isentou o baixa renda por três meses e já antecipou a possibilidade de, como sempre, se fazerem operações financeiras para atender às distribuidoras de energia elétrica, embora essa seja uma dentre outras possíveis soluções para a alardeada crise de liquidez, embora ainda não se saiba a dimensão do problema.
Observe-se que a essa MPV foram protocoladas pelos parlamentares 180 emendas, número inferior apenas ao da fatídica MPV 579. Conforme levantamento da Abraceel, essas emendas podem ser divididas em três partes iguais conforme ilustrado na figura a seguir:
O que se observa é que um terço das emendas busca ampliar o benefício do desconto tarifário aos consumidores, quase sempre sem sinalizar de onde viriam os recursos. Outro um terço busca proteger os consumidores dos efeitos financeiros das medidas seja na busca por novas fontes de recursos, como o aumento dos aportes da União, uso dos eventuais dividendos devidos pela Eletrobras à União, utilização dos recursos de P&D e da tarifa de fiscalização pagos pelos consumidores, multas, Reserva Global de Reversão (que muitos pensavam não mais existir), etc., ou na busca por excluir a criação do encargo para custear as operações financeiras ou excluir os consumidores do pagamento dos descontos e das operações de crédito. Por fim, o terço restante é pulverizado em diversos benefícios, como a suspensão do corte de fornecimento, postergação da fatura, congelamento tarifário, suspensão da tarifa de religação e retorno dos descontos rurais.
Note-se que quase todas as emendas não têm previsão de receita para seu custeio. A possibilidade de que uma conta ainda incerta caia sobre o Tesouro, leia-se contribuintes, e/ou sobre os consumidores é, pois, enorme.
De parte da Aneel, essa estabeleceu medidas temporárias, como a vedação à suspensão do fornecimento por inadimplência de unidades consumidoras de baixa tensão, em seguida liberou recursos do fundo de alívio de Encargos do Serviço do Sistema para reforçar a liquidez no setor e, mais recentemente, aliviou custos de transmissão no segmento de consumo, autorizando o ONS a deduzir os Encargos de Uso do Sistema de Transmissão de Rede Básica para os consumidores livres e distribuidoras e também permitindo a postergação da cobrança da Parcela de Ineficiência por Sobrecontratação de 2019 para outubro de 2020 dos Montantes de Uso do Sistema de Transmissão.
A Aneel também publicou, em 16 de abril, a Nota Técnica 01/2020-GMSE/ANEEL, na qual analisa os efeitos da crise no setor e pondera, acertadamente, que não há proposta única e simples para o problema, apontando serem necessárias soluções que, em conjunto, tenham potencial suficiente para mitigar os impactos da crise. No texto, a Agência estabelece algumas premissas que considera “fundamentais para selecionar as alternativas que possam ser aprofundadas e discutidas e, principalmente, afastar alternativas desalinhadas com os princípios”. Dentre os princípios regulatórios elencados pela Agência, destacam-se a necessidade de evidências; a mitigação dos riscos jurídicos; a manutenção da estabilidade regulatória e da segurança jurídica; a modicidade tarifária; o incentivo à negociação entre as partes; a celeridade das ações; a predisposição de os agentes serem parte da solução; e o diálogo e transparência entre as partes envolvidas na solução.
No documento, a Aneel propõe que as medidas que venham a ser adotadas tenham por base a manutenção do equilíbrio econômico e financeiro das concessões, a preservação dos contratos e a participação dos diversos segmentos do setor, enfatizando serem justificáveis medidas de curto prazo que possam garantir a liquidez, mitigar o risco de inadimplência dos fluxos de pagamentos regulados, preservar a continuidade do serviço de distribuição e a modicidade das tarifas no médio e longo prazo. Nota-se, portanto, a diretriz da Agência de priorizar o socorro às distribuidoras e ao mercado regulado. Não deixa de ser contraditório, entretanto que não obstante uma das preocupações seja a modicidade tarifária, algumas das medidas sugeridas preveem que tal ajuda seja feita com o uso de recursos de fundos setoriais, como P&D, que são fruto em grande parte de contribuições dos próprios consumidores, ou seja, são esses que continuam a pagar a conta.
No que tange ao mercado livre, a Aneel se posiciona acertadamente no sentido de preservar a sua dinâmica de funcionamento, ressaltando que “os agentes atuantes no mercado livre precisam buscar soluções próprias de mercado para os impactos da crise”. É digno de nota o alerta que o regulador faz para que “as soluções propostas para os mercados regulados não impactem negativamente a possibilidade de o mercado livre encontrar suas próprias soluções”. Em suma, é fundamental que as ineficiências e erros do mercado cativo não sejam transferidos para o mercado livre.
Aqui, é importante ressaltar que, ao contrário do que muitos pensam, o mercado livre está sofrendo significativamente com os impactos da pandemia. Comercializadores, por exemplo, vem sentindo na pele o acionamento de cláusulas de flexibilidade em massa por parte de suas contrapartes. Estima-se um impacto de aproximadamente R$ 200 milhões por mês, ou quase R$ 2 bilhões até o final do ano, advindos apenas do acionamento dessas cláusulas. Isso, diga-se, é apenas parte do problema, com base em uma estimativa conservadora, dado que outras soluções estão sendo buscadas no mercado livre para que todos possam superar esse difícil momento.
Também vale reforçar que, bem antes de a Aneel posicionar-se, a Abraceel manifestou-se sobre efeitos da pandemia nos contratos de comercialização de energia elétrica, e orientou seus associados, como não poderia ser de outra forma, para obediência aos contratos. O sucesso do setor elétrico nos últimos anos pode ser medido pela confiança dos investidores nos últimos leilões e aquisições, o que requer o estrito respeito às cláusulas dos contratos e a manutenção na confiança dos investidores para sua continuidade.
Assim, a tônica dessa orientação visa mitigar o risco de judicialização e preservar o bom funcionamento do setor com fundamento no entendimento de que as partes são livres para determinar, contratualmente, as condições da comercialização, inclusive a incidência ou não de eventual caso fortuito ou força maior – ou seus limites, sendo imperativa haver a comprovação da parte que invoca a pandemia como caso fortuito.
Nesse esforço coletivo, causa estranheza, portanto, a iniciativa de alguns, que preconizam o rompimento unilateral de contratos, procurando eximir-se de sua parcela de responsabilidade ou transferir compulsoriamente a terceiros o ônus de suas próprias escolhas, em um movimento que não encontra paralelo no mundo.
Vê-se aqui e ali propostas de ações, como o pagamento de energia conforme o valor utilizado, e não o contratado, ou o deslocamento dos prazos de contratos para uma futura compensação, inadmissíveis, a menos que haja concordância dos envolvidos.
O fulcro da questão é que os contratos de compra e venda de energia elétrica são instrumentos com características financeiras, que não pressupõem entrega física de mercadoria, seja no ambiente regulado como no ambiente livre. Assim as diferenças são liquidadas no mercado de curto prazo ao Preço de Liquidação de Diferenças, sendo essa a regra conhecida e praticada por todos. Quaisquer que sejam os custos envolvidos, seu rateio não deve trazer distorções que impliquem subsídios entre consumidores livres e cativos e entre consumidores conectados em alta e baixa tensão.
Como todos sabem, a principal bandeira da Abraceel é que a liberdade de escolha do próprio fornecedor de energia seja estendida a todos os consumidores brasileiros. Se o mercado livre fosse opção para todos, certamente não estaríamos esperando o governo ou o Congresso Nacional encontrarem saídas para nossos problemas. O que se procura, ao fim, é que quaisquer que sejam as ações a serem adotadas, essas sejam baseadas em informações confiáveis, reduzindo-se ao máximo decisões feitas sem o conhecimento das variáveis envolvidas, ou de cenários imaginários. Neste momento, em que vivemos mais uma crise, evidencia-se que o desenho do nosso modelo comercial mais uma vez não consegue responder adequadamente. Desta feita, em que há abundância do produto energia elétrica, com a consequente redução dos preços, mais uma surpresa está reservada aos consumidores: eles pagarão mais, e não menos!
Já vivemos nos últimos 20 anos momentos de sub e sobrecontratação das distribuidoras e em qualquer cenário os consumidores pagam a conta. Crises recentes são de contratação no ACR e demonstram a falência do modelo atual. Como as distribuidoras são impedidas de comprar energia quando precisam e nos prazos que considerem adequados, todos os erros cometidos ao longo do processo são tratados como excludentes de responsabilidades, mas a conta aparece e tem que ser paga por quem não deu causa.
Evidencia-se assim, mais uma vez, a urgência de acelerar a reforma do setor e o papel das distribuidoras na compra regulada de energia. Não cabem mais argumentos de que são precisos mais estudos ou que os prazos de implantação das mudanças são muito estreitos. É tempo de superar divergências e apego a interesses e questões menores e apoiar soluções estruturais, como as que estão propostas no Congresso Nacional há, pelo menos, cinco anos, como o PL 1917/15 e o PLS 232/16, que propõem profundas reformas do modelo comercial do setor, e tornam competitiva a compra e venda de energia no ACR após um período de transição. Esta crise é a oportunidade para acelerar o necessário movimento de saneamento da regulação setorial. Se não o fizermos, a indústria de energia elétrica continuará a ser uma conta em permanente elevação para os consumidores. E nem será preciso esperar pela próxima crise…