Fim do monopólio da Petrobras gera expectativa de queda de 50% na tarifa industrial e de investimentos superiores a R$ 200 bilhões. Agora só falta convencer os técnicos da estatal
Em quatro anos, a oferta de gás natural no Brasil passará dos atuais 60 milhões de m³/dia para 160 milhões m³/dia. Mas o combustível extra proporcionado pelas reservas do pré-sal pode ser desperdiçado se não existir demanda. A Petrobras, que sempre controlou a cadeia (exploração, tratamento e distribuição) e ditou os investimentos no setor tinha planos para o gás excedente. A estatal construiu fábricas de fertilizantes e terminais de GNL (Gás Natural Liquefeito) que poderiam ser usados para exportação.
No entanto, os escândalos de corrupção e a crise financeira forçou a empresa a anunciar um plano de desinvestimento de US$ 21 bilhões, colocando à venda quase todos os ativos da área. Como na maioria das reservas o gás é associado ao petróleo, não ter destino para ele significa frear a exploração de óleo, logo, uma opção que nunca esteve na mesa. Em paralelo, a indústria, maior consumidora de gás do país, cobra há anos um plano para reduzir o custo da tarifa, que tem o maior patamar do mundo.
Tudo isso forma a tempestade perfeita. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem prometido uma revolução na área. Ele finaliza o plano para reduzir em até 50% o custo do energético. Como resultado, espera impulsionar a indústria, gerar empregos e trazer investimentos superiores a R$ 200 bilhões. A ideia vem sendo moldada em parceria com o economista Carlos Langoni, a quem caberá entregar ao governo sugestões para flexibilizar e baratear a distribuição do produto no Novo Mercado de Gás. Uma conversa flagrada entre os dois, via WhatsApp, na semana passada, mostrou preocupação com resistências ao plano por gerentes da Petrobras, mesmo com a anuência do presidente da estatal, Roberto Castello Branco.
Fundamentado em quatro pilares, o programa deve promover a concorrência, fazer a integração do gás com os setores elétrico e industrial, promover a harmonização das regulações estaduais e federais e remover barreiras tributárias.Vilão da competitividade da indústria, o alto custo da tarifa do gás natural fica evidente quando comparado com outros países. Por aqui, as indústrias pagaram, em 2018, US$ 11 por milhão de BTU, mais que o dobro cobrado no México e quase três vezes mais que o valor pago pela mesma molécula nos Estados Unidos.
Não surpreende, portanto, que hoje o gás responda por apenas 12% da matriz energética brasileira.“Nosso gás é o mais caro do mundo”, afirma Fátima Giovanna Coviello Ferreira, diretora de Economia e Estatística da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). “Exportar o excedente do pré-sal não será a melhor opção para o país porque teríamos que competir com os preços internacionais. É melhor vendermos no mercado interno e estimularmos a indústria e a geração de energia.”
EMPREGOS
Se alcançada, a redução de tarifas deve deflagrar uma nova onda de investimentos nos setores de siderurgia, petroquímico, cerâmico e de fertilizantes. Segundo um estudo da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (ABRACE), a redução de cada R$1/MWh no custo da energia representa um aumento da riqueza nacional de R$ 4 bilhões em 10 anos. “Preços competitivos de gás e energia elétrica podem agregar 1% de crescimento anual ao PIB brasileiro e 12 milhões de empregos no mesmo período”, afirma Paulo Pedrosa, ex-secretário do Ministério de Minas e Energia e presidente da entidade que reúne mais de 50 empresas responsáveis por 42% do consumo industrial de gás natural. “O impacto na balança comercial será grande.”
Nas estimativas da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o setor de gás deve dobrar nos próximos 10 anos com a abertura do mercado. “Quando a Petrobras entrou em crise e apresentou sua proposta de desinvestimento, propondo a venda dos ativos de gás, começamos a acreditar na abertura”, diz Juliana Falcão, especialista em energia da CNI. O único receio é que falte transparência na formação das tarifas. A alta de 36% no preço do gás em São Paulo este ano afetou indústrias do segmento de fertilizantes. “Falta transparência na forma com que cada estado faz a sua revisão tarifária”, completa.
Estes e outros detalhes em relação a questões jurídicas que possam prejudicar as distribuidoras estaduais de gás, por exemplo, estão sendo detalhados no plano de Langoni. “Estamos certos de que os governos estaduais e federal honrarão os contratos vigentes”, afirma Augusto Salomon, presidente-executivo da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás). “Teremos condições de desenvolver um mercado competitivo com múltiplos fornecedores”.
VENDA DE ATIVOS
O discurso favorável ao gás parece estar alinhado em todas as esferas do governo. Em evento para empresários em São Paulo, o presidente do BNDES, Joaquim Levy, afirmou que o gás também pode ser usado como alternativa de combustíveis para caminhões, como já acontece na China. Atualmente, somente 6% do consumo de gás é destinado ao setor automotivo. Em todo o Brasil, são pouco mais de 2 milhões de veículos adaptados, cerca de 5% da frota. Mais da metade está concentrada no estado do Rio de Janeiro, onde o consumidor recebe um desconto 62,5% no IPVA. Ao defender o fim do monopólio da distribuição, Levy garantiu que o País terá “inúmeras oportunidades” e destacou que experiências recentes revelam que há demanda até mesmo internacional pelos ativos na área de infraestrutura.
O grupo francês Engie e o fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec (CDPQ) compraram a participação da Petrobras na Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG) por US$ 8,6 bilhões (R$ 33,6 bilhões), dona de 90% dos dutos no Brasil. Considerada um marco por analistas do setor, a compra permite à Engie diversificar a atuação no Brasil. A empresa opera mais de 32 mil km de gasodutos na Europa, no México, no Chile, na Argentina e na Turquia.
“Em 2017 começamos com investimentos em linhas de transmissão e, agora, entramos no transporte de gás natural”, afirma Gustavo Labanca, diretor de Desenvolvimento de Negócios da Engie Brasil. “Temos todo interesse no setor e vemos com muito bons olhos a abertura. Pretendemos participar.” Há interesse em ativos em quase toda a cadeia, inclusive para estocagem, hoje inexistente no País. “Possuímos mais de 20 estocagens de gás na Europa e o Brasil poderia fazer o mesmo”, afirma Emmanuel Delfosse, diretor de Infraestrura e Gás Natural da Engie Brasil. “Os mercados europeu e brasileiro são muito parecidos e podemos contribuir com a nossa experiência”.
Favorável à privatização de todos os ativos e defensor da entrada de novos agentes no setor, o professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) Edmilson Moutinho dos Santos alerta que é preciso mais do que vontade política para fazer o mercado deslanchar. O primeiro passo, diz, é criar consumo. Mesmo assim, há dúvidas quanto à disposição dos investidores em construir em novos dutos. “É provável que a gente se livre da Petrobras agora e, daqui a uns anos, precise dela de novo. Quero ver conseguir demanda para dutos novos.”, afirma Santos. “Se conseguirmos, será uma grande oportunidade para o País”. Assim esperam Guedes, Langoni e toda a indústria.
“Temos o custo de gás industrial mais alto do mundo”
Carlos Langoni – diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex- presidente do Banco Central
Por que podemos acreditar na abertura do mercado?
A competição beneficia o consumidor de derivados. No caso do gás natural, beneficia o setor industrial e o exemplo clássico é os Estados Unidos. Quando houve a revolução do shale gas (gás de xisto), houve um aumento de oferta e um processo de tornar o mercado livre. Hoje o preço do gás lá está entre US$ 2 ou US$ 3 por milhão de BTU, o mais barato do mundo em um mercado totalmente livre, desregulamentado. Eles têm uma rede de gasodutos, operadores independentes e várias empresas de tamanhos médios. Têm um mercado competitivo.
Qual é o cenário no Brasil?
Nos próximos cinco anos, teremos que ter contratado toda a oferta de gás natural. As plataformas vão produzir muito petróleo e a reinjeção de gás já está no limite técnico de 20%. Também não podemos mais queimar gás. Vamos ter um aumento de oferta de 60 milhões de m³/dia para 160 milhões m³/dia em apenas quatro anos. Precisamos que seja feita a desregulamentação. Hoje temos uma superposição de monopólio. A Petrobras tem quase 100% do mercado e, o que não produz, ela compra. Ela domina a infraestrutura. Mesmo tendo vendido os gasodutos, ela tem o contrato de transporte e compra a capacidade total de transporte, ainda que só use 40% da capacidade.
A saída passa pela privatização?
No futuro podemos até precisar de uma nova legislação, mas não agora. O tempo é precioso. Temos o custo de gás industrial mais alto do mundo, de US$ 12 a US$ 14 por milhão de BTU. No Japão e na Coréia, que importam 100% GNL, este custo está entre US$ 7 e US$ 8. Na Europa, na faixa de US$ 6 e, nos EUA, US$ 2. Alguma coisa está errada e é por isso que o consumo industrial no Brasil está estagnado há 10 anos. Temos que trabalhar em três frentes. A primeira é permitir novos atores na oferta, e a Petrobras vai reduzir sua participação no mercado em 50% dentro de quatro anos. Depois temos que dar livre acesso à infraestrutura de transporte aos novos ofertantes. Temos ainda que criar a figura do consumidor livre. Não precisamos mexer no monopólio das distribuidoras, mas podemos permitir que as indústrias que vão consumir mais de 10 milhões de m³/dia possam negociar o valor do gás e construir sua infraestrutura e suas unidades de processamento.
Qual é o preço ideal para o gás no Brasil?
Podemos chegar a um custo que deve ser entre US$ 5 e US$ 6 por milhão de BTU.
Teremos, finalmente, um cenário de crescimento como o americano?
Ter uma redução no custo de energia, sem artificialismo, vai gerar uma nova onda de investimentos. Não só no Sudeste, mas também no Nordeste. Investimentos alavancados não por incentivos fiscais artificiais, mas pela redução do custo de energia. É de fato uma mudança importante e que pode ser feita num prazo curto. Com a redução no preço, a taxa de investimentos do Brasil deve passar de 16% do PIB para 19% em quatro anos ou até mais que isso, vai depender do preço que conseguiremos.
Fonte: Isto Édinheiro
Jornalista: Renata Victal
Localização: P. 20 a 23
Alcance: Nacional