Questões como falta de reprodutibilidade, heurísticas na previsão de carga e barreiras impostas pelo otimizador precisam ser equacionadas para estimular o maior engajamento dos agentes.
Assim como a portabilidade da conta de luz, o preço horário sempre foi um mito no setor elétrico brasileiro, muito elogiado, constantemente lembrado, largamente estudado, facilmente postergado, mas ainda não implementado. Já em 2000, quando da definição das primeiras regras do mercado atacadista de energia elétrica, a Aneel estabeleceu que o preço horário seria implementado até 1º de janeiro de 2002. Logo após o racionamento de 2001, a medida acabou revogada e, passados 20 anos, continuamos presos a um modelo que precifica a eletricidade semanalmente, por patamar de carga, um caso sem igual em países que liberalizaram seus mercados elétricos, o que traz ineficiências na produção e uso desse bem essencial.
Corajosamente no ano passado, o Ministério de Minas e Energia, consciente da necessidade de modernização do setor, aprovou a implementação do preço horário em duas etapas. A primeira ocorreu este ano, com a adoção do Modelo de Despacho Hidrotérmico de Curtíssimo Prazo (Dessem) na programação da operação feita pelo ONS. A segunda, conforme disposto na Portaria MME 301/2019, ocorrerá a partir de 1º de janeiro do ano que vem, com o uso do Dessem para fins de formação de preço na CCEE.
A divisão em fases, importante para superar entraves relacionados à implantação do preço horário, serviu como experiência e previsibilidade aos agentes, que dispuseram de um período mais extenso de operação sombra (simulação de resultados). Contudo, a despeito dos significativos esforços empreendidos pelas instituições setoriais e do grande avanço obtido no aperfeiçoamento do Dessem, quatro questões ainda merecem atenção para permitir a entrada do preço horário com a segurança requerida.
Reprodutibilidade – Ainda falta ao modelo Dessem a reprodutibilidade requerida pelos agentes. No final do ano passado, identificou-se que computadores com configurações diferentes obtêm resultados distintos quando processam o Dessem, mesmo quando todos os inputs são os mesmos. O ONS e a CCEE, que possuem computadores diferentes, realizaram simulações com os mesmos dados, parâmetros e versão do modelo e obtiveram valores diferentes de preços.
Sem clareza quanto à origem do problema, tanto o ONS quanto a CCEE estão debruçados sobre alternativas de solução da questão. No último encontro do preço horário, foi divulgado que sete linhas de ação para a solução estão sendo pesquisadas e uma das mais promissoras sugere o uso obrigatório de processadores com o mesmo conjunto de instruções AVX para assegurar a reprodutibilidade dos preços.
Como os agentes não têm clareza sobre o tamanho e a frequência das divergências, e linguagem de computação não é muito acessível, faz-se necessário que as instituições atestem que os resultados do modelo são plenamente reprodutíveis. Essa é questão primordial, pois sem conseguir replicar os resultados das rodadas oficiais, o engajamento dos agentes na implantação do preço horário é mais difícil, em função da necessária credibilidade e confiança nos resultados das simulações do modelo.
Reserva de mercado – Nas ações para resolver a questão da reprodutibilidade, a ferramenta de otimização utilizada na programação, denominada Cplex, está no centro das discussões. Uma das linhas de ação, inclusive, avalia sua troca. Para o pleno sucesso da implantação do preço horário é fundamental que as preocupações do mercado sejam consideradas. Há insatisfação entre os agentes quanto às barreiras impostas pelo otimizador, que vão desde o custo elevado de cada licença até as dificuldades para realização de rodadas simultâneas.
Cada licença do otimizador autoriza o uso de apenas dois núcleos de processamento. Desta forma, no caso de diversas rodadas de simulações, o tempo de processamento aumenta o risco de travamento do modelo, o que dificulta a avaliação de risco pelos agentes. Para exercer sua atividade cotidiana, os comercializadores precisam rodar o modelo várias vezes, com diferentes dados de entrada, visando permitir análises de múltiplos cenários de preços para gerir riscos e prover a liquidez necessária ao bom funcionamento do mercado.
Adicionalmente, os agentes relatam muitas dificuldades na contratação do Cplex, como o custo elevado de cada licença, o que pode prejudicar a competição isonômica para agentes de pequeno porte. Desta forma, a contratação de várias licenças para realização de rodadas simultâneas impõe barreira de entrada no mercado de energia, prejudicando ainda mais os pequenos, resultado de uma indesejada reserva de mercado que vai em sentido oposto à modernização do setor.
É fundamental que a solução para o problema da reprodutibilidade considere também as dificuldades impostas pelo otimizador, com avaliação de outras opções disponíveis no mercado, algumas já utilizadas em outros modelos de despacho centralizado: gratuitas, de código aberto e bom desempenho.
Mesmo com o argumento que diversos agentes já adquiriram suas licenças, é certo que a maioria ainda não o fez e os benefícios de uma solução de menor custo global se estendem a todos, principalmente porque se trata de uma reserva de mercado.
Heurísticas – Eventuais interferências humanas não devem impactar os preços calculados pela CCEE, sendo admitidas apenas na programação da operação feita pelo ONS. Essa é outra questão que compromete a previsibilidade e reprodutibilidade dos preços, principalmente em um momento em que a previsão de carga ganha maior relevância, pois o preço horário tende a acompanhar o seu comportamento.
A incorporação do modelo PrevCargaDessem como etapa formal no processo de previsão da carga diária representa grande avanço em relação ao método de conhecimento tácito dos especialistas do ONS. Reconhecemos que o Operador precisa fazer ajustes nos resultados do modelo e utilizar as melhores informações disponíveis para assegurar a segurança do suprimento, mas quando esses ajustes externos são feitos na etapa de formação de preços, os resultados são afetados, o que conflita com credibilidade do processo.
Apesar de o PrevCargaDessem não utilizar critérios heurísticos, o modelo é apenas uma etapa do macroprocesso de consolidação da carga, que continua suscetível a intervenções externas. Dessa forma, sugerimos comandos regulatórios que impeçam qualquer tipo de heurística na previsão de carga quando utilizada para cálculo do preço horário.
Antecedência – Para que a mudança do preço semanal para o preço horário ocorra de forma suave e segura, preservando a liquidez do mercado, sugere-se que todos os elementos que compõem o Dessem sejam aprovados com antecedência, incluindo os modelos satélites, a definição do otimizador e a revisão das Regras de Comercialização. Faltando seis meses para implantação do preço horário os agentes ainda não percebem com clareza o que efetivamente entrará em vigor, comprometendo a confiança no processo.
Temos certeza que após uma espera de 20 anos pela implementação do preço horário, enorme avanço no modelo comercial da energia e de gestão do sistema elétrico, não faltará um esforço conjunto entre agentes e autoridades para evitar a máxima da cultura brasileira: deixar tudo para a última hora.
Bernardo Sicsú e Yasmin Oliveira são, respectivamente, diretor e assessora da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia.
Fonte: Canal Energia
17.06.2020