Em entrevista, diretor da associação e coordenador do Fórum do Gás analisa desafios para a implantação de um mercado livre no Brasil
Segundo o Fórum do Gás, formado por 16 entidades brasileiras, a aprovação da Lei do Gás pode estimular investimentos na casa dos R$ 60 bilhões nos próximos 10 anos, com geração de 4 milhões de novos postos de trabalho. O coordenador adjunto da iniciativa e diretor de eletricidade e gás da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), Bernardo Sicsú, analisa os desafios para a implantação de um mercado livre de gás e seus possíveis impactos na economia brasileira.
Que dificuldades o Brasil enfrenta para o estabelecimento de um mercado livre de gás?
É preciso destravar nós no alto da cadeia, perto da produção, no transporte e mais perto do consumo, na discussão com os estados. O mercado de gás, hoje, é monopolizado, com um único supridor fazendo a comercialização, muito concentrado e com pouca diversidade de players; poucos agentes conseguem tanto acessar quanto oferecer os seus produtos. As dificuldades são grandes, tanto que a iniciativa do governo federal, o Novo Mercado de Gás, tem várias frentes de ação para destravar o acesso às infraestruturas essenciais, que são os gasodutos de escoamento, unidades de processamento e terminais de GNL. Busca-se dar um tratamento não discriminatório com acesso transparente a essas infraestruturas essenciais para que se tenha mais oferta chegando ao mercado, mas isso não é suficiente. É preciso destravar nós no transporte, ter uma operação que seja independente desse elo, que é um monopólio natural, pressupondo uma operação que seja livre de conflitos de interesse no mercado ou em outros elos. Uma questão que já está evoluindo, mas que precisa ser implementada de forma ampla, é um modelo de tarifação de entradas e saídas. Esse modelo permite a criação de uma “grande piscina”, em que o gás pode ser disponibilizado em qualquer ponto e retirado em outro. Isso vai permitir um mercado mais líquido, com mais agentes. Há também os problemas com as regulações, tanto a nível federal quanto a estadual, que precisam ser harmonizadas.
Que problemas são esses?
São os estados que definem a regra, por exemplo, para os consumidores livres. No Amazonas, o limite para o consumidor livre é de 500 mil m³/d; já em São Paulo, é de 10 mil m³/d. É uma disparidade muito grande, que acaba criando uma guerra do gás: dependendo do lugar em que se está, a regra pode simplesmente impedir que você acesse o mercado livre.
Qual a importância do PL 6407/2013 (Lei do Gás) para a criação do mercado de gás no Brasil?
O projeto é fundamental. Primeiro, o PL vem muito alinhado com essa iniciativa do Novo Mercado de Gás, buscando dar sustentação jurídica para essa abertura de mercado e estabelecendo em lei várias ações que estão sendo feitas de forma infralegal, o que dará maior segurança ao investidor. Mas há pontos fundamentais que não poderão avançar de forma infralegal, como a construção de gasodutos. Hoje, essa atividade é feita por concessão, que é um modelo burocratizado e demora, tanto que, nos últimos dez anos, não se construiu nenhum no Brasil. Na Lei do Gás, é proposto um regime de autorização, que simplifica a outorga dos gasodutos, processo que vai permitir trazer mais investimentos.
Qual a dimensão dos investimentos que podem ser gerados?
O plano de desenvolvimento energético feito pelo governo, por exemplo, estima investimentos na cadeia do gás na ordem de R$ 43 bilhões nos próximos dez anos. O Fórum do Gás projeta até R$ 60 bilhões com a aprovação desse projeto de lei, que é essencial para a retomada da economia brasileira.
A Lei do Gás tramita na Câmara desde 2013. Por que o PL tramitou por tanto tempo?
O PL foi iniciativa do então deputado Mendes Thame, de São Paulo, em conjunto com as entidades do mercado que sempre tiveram interesse na abertura do mercado de gás. Mas, na época, não havia interesse do governo. Depois, houve uma mudança de rumos, com o novo governo, mas o projeto passou a enfrentar resistência grande das distribuidoras, que têm, em grande parte, governos estaduais como acionistas. Até hoje há essa resistência porque se entende que o modelo de mercado mais aberto e livre poderia prejudicar as distribuidoras, o que não é verdade, vide o que está acontecendo no setor elétrico brasileiro, com a aprovação de um empréstimo de R$ 16 bilhões para socorrer as distribuidoras por um problema muito associado à compra de energia. O que se busca, com a abertura do mercado, é permitir que os grandes consumidores e os comercializadores possam gerir a sua energia e tirar isso das costas das distribuidoras.
Por que a urgência para aprová-lo neste momento?
O país precisa destravar investimentos e precisa ter uma preocupação muito grande com as reformas, de modo que a economia possa voltar a um ciclo virtuoso. O gás natural é um insumo essencial que se alastra por toda a economia, e os impactos que uma redução no custo do gás trazem de benefício para a competitividade do país são enormes.
Como o senhor avalia as iniciativas tomadas pelos estados para proporcionar a abertura do mercado?
Ainda é uma questão muito díspar. Alguns estados estão encaminhando mais fortemente, outros simplesmente não fizeram qualquer tipo de movimento. Há estados que têm uma preocupação de rediscutir seus contratos, como é o do Espírito Santo, mas nada concreto foi feito. E outros que, pelas agências reguladoras, estão buscando aperfeiçoamento das suas regra, como Sergipe, Rio de Janeiro e São Paulo.
Como é possível alcançar o mercado livre de gás com regras estaduais distintas?
Recentemente, nós, do Fórum do Gás, que reúne 16 associações interessadas na abertura do mercado, apresentamos uma proposta de diretrizes federais para a regulamentação dos estados ao Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás, que engloba o BNDES, Cade, MME e EPE. O MME e a ANP estão em vias de abrir uma consulta pública para discutir um manual de boas práticas regulatórias, que deve conter sugestões para os estados.
Agentes do setor defendem que a abertura do mercado e consequentes investimentos em infraestrutura podem diminuir os custos do gás natural. Isso é suficiente para garantir a competitividade do gás brasileiro em relação ao internacional?
Temos uma crença muito grande de que só a competição trará uma redução do custo de forma expressiva e estrutural. A abertura vai reduzir só a molécula? Eu acho que não, ela deve reduzir outros elos também. A partir da entrada de novos agentes, há a pressão para redução nas tarifas de transporte em função da concorrência nesses segmentos e, porventura, no segmento de distribuição, fruto de um aumento dos volumes comercializados e transportados dentro da rede. A abertura do mercado é o que vai garantir a nossa competitividade no cenário internacional. Hoje, os números são tristes: a indústria brasileira paga um dos gases mais caros do mundo.
O ambiente político conturbado e a ameaça de retirada de investimentos estrangeiros do país podem prejudicar o andamento da abertura do mercado?
Os investidores buscam um arcabouço jurídico e regulatório de maior competição e estabilidade. Então, entendo que isso acaba contribuindo para a aprovação da Lei do Gás. A maioria dos agentes o apoia, e esses movimentos que vêm do exterior só contribuem porque colocam pressão sobre a necessidade de melhores regras e melhor ambiente de negócios, e o projeto de lei vai nesse sentido.
Fonte: Brasil Energia
30.06.2020