Franceli Jodas e Rodrigo Bauce
Na última década, foi observado um crescimento significativo do mercado livre de energia, criado em 1995 por meio da lei 9.074 com o objetivo de estimular a concorrência nesse setor e em consequência reduzir preços da energia aos consumidores livres. Segundo dados divulgados no início deste ano, pela Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), em 2019 este mercado representou cerca de 30% de toda a energia consumida no país, movimentando aproximadamente R$ 134 bilhões e com perspectivas de crescimento nos próximos anos.
Contudo, são evidentes os potenciais riscos para os agentes e consumidores finais em função da forte exposição às incertezas como, por exemplo, fatores meteorológicos, posição geográfica do consumidor, inflação, risco de crédito, liquidez e nível da demanda. Esses influenciam na variação dos preços da energia, alterando de forma significativa a relação entre agentes do setor elétrico local, como também é o caso do cenário atual de pandemia por Covid-19.
Em fevereiro do ano passado, foi publicada uma circular do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon) abordando a comercialização de energia no país. Foi considerado na publicação que é necessário avaliar os possíveis modelos de operações definidos como portfólio de atacado (wholesale) ou de negociação (trading). O primeiro está, em geral, associado ao longo prazo e parte da ideia de que o comprador realmente fará uso da energia. Já o segundo, refere-se geralmente às negociações de curto prazo, possui foco nos ganhos em variações de preços, sem a necessidade de combinar um contrato de compra com um de venda.
É complicado imaginar que possamos iniciar uma transação vendendo antes do que comprando, mas é o que acontece de forma bem frequente neste ambiente. Algumas dessas operações podem gerar amplificação de riscos financeiros com a alavancagem originada por alguns instrumentos negociados no mercado futuro através de contratos a termo de energia.
Um caso bem emblemático divulgado no ano passado foi o de uma comercializadora independente que possuía um capital social de aproximadamente R$ 10 milhões e, ao apostar na queda dos preços de energia, sofreu com arresto de bens por não ter honrado cerca de R$ 200 milhões em contratos no mercado livre.
Em linhas gerais, a comercializadora atua como intermediária. O ajuste de contas é efetuado pelo preço de liquidação das diferenças (PLD) que é estabelecido semanalmente pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Mas, assim como no mercado financeiro, os preços sobem com boatos e descem no fato e quem estava segurando uma posição vendida, apostando na baixa, acaba pagando a conta quando na alta dos preços.
Chama a atenção, nestas negociações, a ausência de uma bolsa de valores com transações ordenadas definidas, bem como de referências de preços que acabam sendo impactadas por estimativas, incluindo dados não observáveis em mercado. É também notório o risco regulatório, por se tratar de um ambiente sem limites definidos de alavancagem. Contudo, a perspectiva de ampliação deste mercado tem atraído participantes com níveis de governança e controles mais sofisticados, como é o caso das instituições financeiras.
Adicionalmente, movimentos importantes podem ser destacados. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) debateu, em março deste ano, a autorização para o Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia (BBCE) atuar como administrador de mercado de balcão organizado, abrindo caminho para os planos da plataforma de negociação de derivativos de energia com registro e liquidação na BBCE. Já a Bolsa de Valores de São Paulo divulgou, em abril deste ano, que pretende entrar no setor de energia elétrica lançando uma ferramenta de pré-registro de contratos firmados entre empresas que operam no mercado livre.
Na ótica de gerenciamento de riscos, estas iniciativas poderiam também aumentar a transparência das operações, porém o desafio é a inexistência de uma bolsa organizada ou uma contraparte central com mecanismos de garantias das operações. De fato, com os movimentos acima mencionados associados às evoluções regulatórias em curso, o futuro parece muito promissor para a competitividade do mercado livre de energia, e sendo fundamental para a retomada econômica pós Covid-19.
*Franceli Jodas é sócia do setor de energia elétrica e utilidades públicas da KPMG no Brasil e Rodrigo Bauce é sócio-diretor de riscos financeiros da KPMG no Brasil.
Fonte: Coluna Opinião Formada | Jornais em Foco
09.07.2020