Somos do entendimento que a abertura do mercado livre de energia elétrica poderia ser promovida independentemente de alteração legislativa, mesmo para os consumidores do Grupo B atendidos em baixa tensão, por meio, unicamente, de adequação da regulamentação vigente e de atos infra legais do Ministério de Minas e Energia – MME
RODRIGO MACHADO E FELIPE ZARATINI, ADVOGADOS Sócio e associado do Madrona Advogados
- Tramitam atualmente no Congresso Federal dois projetos de lei de maior relevância que buscam “modernizar” e reformar o setor elétrico brasileiro. São eles: o PLS nº 232/2016 e o PL nº 1.917/2015.
- Dentre outras mudanças, um dos aspectos de impacto mais direto no consumidor final e que mais tem sido noticiado em ambos os projetos é a abertura progressiva do mercado livre de energia, até que haja a possibilidade de todos os consumidores escolherem seu fornecedor de energia.
- Nesse sentido, parece haver o entendimento geral de que a aprovação de uma lei, em sentido estrito, seria essencial para alcançar esse objetivo – especialmente para que a abertura alcance os consumidores do “Grupo B”, atendidos em baixa tensão (inferior a 2,3kV).
- Todavia, conforme será demonstrado adiante, somos do entendimento que a abertura do mercado livre de energia elétrica poderia ser promovida independentemente de alteração legislativa, mesmo para os consumidores do Grupo B atendidos em baixa tensão, por meio, unicamente, de adequação da regulamentação vigente e de atos infra legais do Ministério de Minas e Energia – MME.
- Com isso, a dita “modernização” (objeto dos PLs mencionados acima) poderia focar em temas mais cruciais e que, de fato, dependem de tratamento legal.
Histórico Legal
- Para avaliar os atuais requisitos legais no que se refere à participação dos consumidores no Ambiente de Contratação Livre (“ACL”) cumpre, inicialmente, destacar que a legislação estabelece dois requisitos distintos: (i)o de carga; e (ii) o de tensão.
- A Lei nº 9.074/1995 estabeleceu (em seu artigo 15) que os consumidores existentes no momento da publicação da lei (08.07.1995) com cargaigual ou maior que 10.000kW e atendidos em tensão igual ou superior a 69kV poderiam adquirir energia no ACL.
- A lei também estabeleceu (artigo 16) que o ACL seria acessível aos novos consumidores (aqueles que surgissem após a publicação da lei), cuja carga fosse igual ou maior que 3.000 kW, atendidos em qualquer tensão.
- Ainda, também havia previsão (artigo 15, §2º) de que decorridos cinco anos da publicação da lei (i.e., em 08.07.2000) o requisito de cargapara os consumidores existentes em 08.07.1995 seria reduzido para 3.000kW. Por fim, o §3º do mesmo dispositivo determinou que, após oito anos da publicação da Lei, o Poder Concedente poderia diminuir os limites de carga e tensão estabelecidos.
- Assim, em 2016, por meio da Lei 13.360/2016, incluiu-se o §2º-A ao art. 15, dispondo que, a partir de 01.01.2019, os consumidores existentes em 08.07.1995 não teriam mais requisito de tensão.
- Isto é, conforme se extrai da leitura da atual redação da Lei nº 9.074/1995, não há, hoje, na legislação, qualquer requisito de tensãopara acesso ao ACL. Permanecendo na letra expressa da lei apenas o requisito de carga – o qual, conforme visto acima, pode ser reduzido diretamente pelo Poder Concedente.
- E, com efeito, o Ministério de Minas e Energia – MME se valeu dessa prerrogativa vem diminuindo os requisitos de carga para enquadramento de Consumidor Livre. A primeira vez em dezembro de 2018, por meio da Portaria MME nº 514/2018, e, novamente, em 16.12.2019, por meio da Portaria MME nº 465/2019, que alterou a Portaria MME nº 514/2018.
Origem da celeuma
- Conforme mencionado na introdução do presente artigo, muitos entendem que a aquisição de energia por consumidores do Grupo B (atendidos em baixa tensão) é vedada, sendo necessária uma lei autorizando tal atividade. Mas, se a lei atualmente já dispõe sobre os consumidores atendidos em qualquer tensão, qual seria o fundamento para a restrição ao grupo B?
- Em realidade, a vedação de acesso dos consumidores do Grupo B ao ACL não está relacionada a um critério legal, mas sim a um critério técnico-regulatório.
- E isso porque, especificamente para o enquadramento como “Consumidor Especial”, esse requisito (i.e., de a unidade consumidora ser do Grupo A) foi determinado pela Diretoria da ANEEL com base no entendimento de que seria necessário possuir demanda contratada, e apenas consumidores do grupo A, sujeitos à tarifa binômia, que permitiria aferir essa demanda. Vejamos o voto da Diretora-Relatora Joísa Saraiva no contexto da emissão da Resolução Normativa nº 247/2006 (que, na prática, regula a comercialização com consumidores especiais):
“De acordo com a minuta de Resolução, a carga de 500 kW de que trata o § 5º do art. 26 da Lei no 9.427/96 é considerada como a demanda contratada pela unidade consumidora ou conjunto de unidades consumidoras (§ 3º do art. 1º). Com isso, pelo inciso XXII do art. 2º da Resolução ANEEL no 456, de 29 de novembro de 2000, tem-se que, para possuir demanda contratada (estrutura tarifária binômia), a unidade consumidora deve pertencer ao Grupo “A”, o que impõe uma restrição técnica para o enquadramento na condição de Consumidor Especial.” (grifo nosso)
- Notamos, ademais, que esse entendimento foi ressaltado pela ANEEL em 2016 no contexto da emissão da Resolução Normativa nº 714/2016 (“REN 714/2016”) em que se discutia o aprimoramento dos contratos firmados entre consumidores e distribuidoras.
- Sob tal resolução (i.e., a REN 714/2016), os consumidores do Grupo A passaram a assinar com a distribuidora um Contrato de Compra e Venda de Energia Regulada – CCER e um Contrato de Uso do Sistema de Distribuição – CUSD. A Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia – ABRACEEL requereu, na audiência pública que antecedeu essa norma, que essa mesma estrutura (de CCER e CUSD) fosse aplicada para os consumidores do Grupo B.
- Todavia, a ANEEL novamente manifestou o entendimento de que a estrutura tarifária binômia seria requisito para a migração para o ACL.
- Ocorre que, conforme se verá adiante, a estrutura tarifária binômia (i)não é requisito para migração para o ACL; (ii) a própria ANEEL já assim reconheceu; e, ainda que assim fosse (iii) pode, hoje, ser aplicada aos consumidores do Grupo B.
Estrutura Tarifária do Grupo B
- O Decreto nº 62.724/1968 estabeleceu, em seu artigo 13, que as tarifas para o grupo B (Baixa Tensão) deveriam ser calculadas na forma binômia, com uma componente de demanda de potência e outra de consumo de energia, e fixadas, após conversão, para a forma monômia equivalente. O Decreto nº 8.828/2016, revogou este artigo possibilitando a implementação de tarifas multipartes para tais consumidores, a exemplo do que já ocorre para os consumidores do grupo A (alta e média tensão).
- E foi nesse contexto que a ANEEL abriu a Audiência Pública nº 59/2018 (“AP 59/2018”) que visa “obter subsídios para a Análise de Impacto Regulatório – AIR sobre o aprimoramento da Estrutura Tarifária aplicada aos consumidores do Grupo B – Baixa Tensão – Tarifa Binômia.”
- Apesar de o Decreto nº 8.828/2016 trazer ao Grupo B a estrutura tarifária binômia – que até então era tratada como requisito para o acesso ao ACL -, na versão preliminar da Análise de Impacto Regulatório – AIR disponibilizada na AP 59/2018, a ANEEL passou a reconhecer expressamente que a estrutura tarifária binômia não é requisito para a migração para o ACL. Vejamos:
“29. É comum encontrar nas discussões para abertura do mercado de energia para todos os consumidores, a afirmação de que é necessária uma mudança no modelo tarifário para permitir a ampliação do mercado livre, que permita separar o faturamento do serviço e da quantidade de energia elétrica consumida. Adota-se ainda o argumento de que apenas é possível a comercialização de energia elétrica caso o faturamento do transporte de energia elétrica fosse proporcional à demanda faturada.
- Este entendimento repercutiu nos regulamentos da ANEEL e até 2011, os consumidores livres do grupo A só possuíam a modalidade tarifária horária azul disponível para o seu faturamento. Caso o consumidor fosse da modalidade horária verde , ao migrar para o mercado livre, deveria alterar sua modalidade tarifária.
- O Módulo 7 do PRORET acabou com esse equívoco, permitindo que consumidores que participam do mercado livre escolham entre as modalidades tarifárias azul e verde, caso pertencentes aos subgrupos tarifários A3a e A4.
- Conclui-se o entendimento de que não é condição necessária para participação do mercado livre o faturamento do serviço de transporte proporcional à demanda. A condição necessária e já atendida, é a separação do preço do produto do preço do serviço (TUST e TE).” (grifos nossos)
- Ou seja, o entendimento firmado em 2006 no contexto de emissão da REN 247/2006 de que a estrutura tarifária binômia era requisito para o ACL – equivocado, a nosso ver – foi revisto pela própria agência.
- Corroborando esse entendimento, a ABRACEEL apresentou contribuição na AP 59/2018 demonstrando que “[o] requisito para o mercado livre é a abertura tarifária e a separação entre as tarifas fio e energia, conforme determina a composição tarifária estabelecida pelo Decreto nº 4.562 de 2002. Dessa forma, as tarifas já refletem a separação do produto e do serviço desde 2003, com a separação efetiva entre as tarifas de transporte (TUSD) e energia (TE), inclusive para consumidores residenciais.”
- Ademais, o entendimento da ANEEL se baseou na norma que estabelece os requisitos de enquadramento como Consumidor Especial, uma figura específica, criada para incentivar as fontes renováveis por meio do desenvolvimento de um mercado específico para essas.
- Isso não afasta, de qualquer forma, a autorização existente na Lei nº 9.074/1995 para que o Poder Concedente siga reduzindo os limites de enquadramento como Consumidor Livre (que é uma figura mais abrangente do que o Consumidor Especial).
Conclusão
- Assim, diante de todo o exposto, conclui-se:
(A) Desde 2016 não há mais qualquer requisito de tensão na legislação para acesso ao ACL;
(B) Existe expressa autorização legislativa (art. 15, §3º, da Lei nº 9.074/1995) para que o Poder Concedente reduza os patamares de carga exigidos para enquadramento como consumidor livre;
(C) A ANEEL evoluiu no entendimento e hoje externa que não é necessária estrutura tarifária binômia para o ingresso no ACL, bastando apenas a separação entre TUSD e TE (que já ocorre desde 2003);
(D) Portanto, apesar de haver entendimento nesse sentido no setor, não há indícios de que haja qualquer restrição legal para que consumidores do grupo B migrem para o ACL, desde que atendam aos requisitos de carga a serem estabelecidos pelo Poder Concedente.
- Nesse contexto, apesar de muito se discutir sobre tratar da abertura de mercado no contexto de projetos de lei, entendemos que a abertura do mercado poderia ser promovida de maneira infra legal mediante simples adequação da regulamentação pela ANEEL e da emissão pelo MME das correspondentes portarias de redução nos níveis de carga exigidos (como já vem sendo feito).
- Por fim, ainda que seja interessante do ponto de vista de política pública e de direcionamento das atividades regulatórias tratar da abertura de mercado em lei, não nos parece que isso seja conveniente ou recomendável (e nem sequer necessário).
- E isso porque ao colocar, por exemplo, um cronograma de abertura em uma lei, o Poder Público estaria vinculado a esse cronograma e qualquer necessidade de alterá-lo (por exemplo, diante da verificação no mundo prático de quaisquer dificuldades) dependeria de movimentar todo o aparato legislativo novamente.
- Em outras palavras, seria pertinente tratar esse assunto na lei somente de forma ampla, sem engessar a atuação das entidades regulatórias (que, em última análise, detém a informação técnica necessária para avaliar o momento adequado de abertura do setor).
- Apesar da abertura de mercado ser importante, ela não é o único tema indispensável da reforma do setor elétrico. Assim, parece-nos que a reforma em âmbito legislativo deveria focar em temas que efetivamente dependem de lei, tais como os incentivos e subsídios às energias renováveis ou o modelo das distribuidoras de energia elétrica face às novas tecnologias que estão transformando o setor.
Rodrigo Machado e Felipe Zaratini são respectivamente sócio e associado do Madrona Advogados